passo horas aqui, neste cubículo umbroso e húmido. finjo ver através do corpo que é a alma e do mistério maior que é o tempo. tenho tempo para conjecturar. tempo entre clientes.
tenho tempo nas pausas que fazem. longas pausas, monólogos maiores. visitam-me para falar. sou o fundo do poço onde segredam, inclinados. as pessoas falam, emendam-se ao falar, consertam-se. revelam-se prontas para a luz. saem para a luz como se nunca voltassem à sombra.
eu próprio dou longos passeios junto ao mar, à flor da luz... tenho pena de não saber nomear as aves. aquele pássaro de sombra. ave de arribação entre a culpa e o desejo, em que poço bebes? em que poço bebo eu?
estou aqui, sempre. é difícil lembrar o mar, aves, estrelas, e outros exageros. chegam-me antes as histórias de quem as visita. aparecem-me do negro, como em negativo. continue, por favor. prometo ouvi-lo. prometo não me esquecer de si.
alguns tentam aprender a odiar. à beira de um abismo, de um poço em que cada fiada de pedra é um ano de vida. por vezes sabem coisas em que eu nunca tocarei. gritam. rezam. e sem haver deus. e fazem silêncios enormes que me doem no estômago. há coisas que não cabem em nós. é preciso aguentar, esperar que passe. e tudo passa, não é verdade?
o meu criador é a Vergonha Enorme, aquela mão que ilude. no meu teatro anatómico amontoam-se frascos de vidro. órgãos que não serviram, partes, promessas boiando em formol. assim se encontra o coração de um tímido.
escondo-me da minha própria história, porventura.
duvido muito. recomeço sempre. também é essa a minha história. raramente sinto a presença. tenho a confiança mas duvido. suspeito que a ordem do mundo seja perfeitamente insondável. neutra.
tenho dias. imagino o que seria ter grandes conselhos para dar. instruções de voo. como planar sobre a cidade. ultrapassar os cabos eléctricos. cuidados a ter com o fogo das estrelas.
sermos só mais um ponto no céu da noite.
francisco sousa lobo
2 comentários:
recomeço nessa dúvida
espreitando atrás do ombro.
a dúvida que empurra.
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